terça-feira, 15 de maio de 2012

O ALQUEIRE


A história do alqueire confunde-se com a história do país. É um símbolo de identidade, de auto-afirmação, de organização, de querer, de modus vivendi. A sua existência é anterior à nacionalidade.
Com a conquista do território aos árabes, adquiriram-se também os seus modos, usos e costumes. A forma de medir a quantidade dos cereais era através duma medida chamada alqueire. No reinado de D. Afonso Henriques, utilizou-se o alqueire exactamente de acordo com a medida usada já  pelos arábes, que correspondia a 3,5 litros de cereal. A sua utilização generalizou-se pelas diferentes regiões do reino, no entanto cada localidade adaptou-o de acordo com a sua organização social, cultural e económica.Tentou o nosso 1º Rei, uniformizar o alqueire em todo o reino, mas não conseguiu. Foi mais fácil vencer os mouros do que padronizar as medidas do alqueire.
Sucederam-se outros reis, tais como D. Afonso IV que decretou que o alqueire deviria corresponder a 8,7 litros em todo o reino, mas  cada região teimosamente usava o seu alqueire. D. Pedro I o justiceiro, alterou o alqueire para 9,8 litros, mas de igual modo não conseguiu impô-lo. Seguiu-se a Reforma Manuelina com o seu alqueire já nos 13,1 litros, mas o povo não cedia. Cada local tinha o seu alqueire e não havia nada a fazer. Mesmo depois do terramoto de 1755, o marquês de pombal alinhou com o alqueire usado em Espanha, mas também resultaram infrutíferas as suas tentativas da aplicação a todo o país. Seguiu-se a tentativa da República e o Estado Novo, mas debalde.
 É que o alqueire foi também usado como medida de superfície, e esta era medida de acordo com a semente que levava um alqueire, que era espalhada no terreno.Cada vila do reino tinha a sua forma de medir os terrenos e mexer nisto, era como tocar na alma do povo. Conforme a região o alqueire podia medir entre 13 litros a 19 litros. As populações deslocavam-se para comprar sementes, às vilas aonde fosse maior o alqueire.O preço do alqueire pouco ou nada  variava entre localidades, a medida é que era diferente.
Nem mesmo o sistema métrico ofuscou o alqueire. Finalmente este cedou , por imperativos comerciais ditados pela conquista de outros mercados, ao sistema internacional .O alqueire,  como outras medidas agrárias, estavam assim indissociávelmente ligadas à vida da gentes rurais. Curioso foi o episódio, protagonizado por um senhora duma aldeia de tras-os-montes, vestida de negro com lenço e um feixe de lenha à cabeça, indagada por um jornalista vindo da capital,  se ela ia votar na assembleia constituinte, decorria então o ano de 1976. Ela respondeu afirmativamente. -E sabe o que é a assembleia constituinte ? retorquiu o jornalista.-Eu não senhor, não sei ! disse a senhora.
- E o senhor sabe o que é o alqueire? atirou mortífera a aldeã.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cidraque - O meu treinador

Nos meus dezasseis, dezassete anos pratiquei remo.O meu treinador chamava-se Cidraque. Homem com face de tez tisnada, rugas vincadas, de músculos proeminentes. Fumava e bebia vinho tinto, era bom conversador.Gostava da garotada. Os putos admiravam-no. Tinha sido barqueiro no rio douro. Com o seu caíque a remos rebocava barcaças enormes cheias de mercadorias que tinham sido descarregadas  dos enormes navios atracados no cais de gaia. Que saudades daquele cais de gaia! Que pulsar de vida naqueles tempos. Lembro-me dos enormes rebocadores, que ajudavam os enormes navios a inverter o sentido de navegação, recordo os enormes  guindastes, o movimento contínuo dos tripulantes e  estivadores, dos mercadores e agentes marítimos, lembro-me do vai e vem das mercadorias, das vagonetas nos carris, da azáfama dos conferentes, do escalar dos trabalhadores, da tristeza profunda daqueles que não figuravam na escala! Tempos duros, mas também  exaltantes e coloridos. Hoje o cais de gaia é um recinto  triste, falsamente moderno, plastificado, pouco digno das suas raízes históricas. Falava do meu treinador Cidraque. O seu caíque parecia que tinha motor. Remava com energia, bem coordenado, remada forte e ritmada. A sua barcaçava deslizava suavemente nas águas  do douro. Remava desde menino, seu pai passou-lhe este ofício, para alem da pesca não sabia fazer mais nada. Na reforma tornou-se treinador de remo. Ensinava-nos a posição das costas no banco dos barcos de remo de competição, o movimento das pernas,  como devem entrar os remos na água, o movimento das mãos e dos pulsos, a importância da remadas sincronizadas, a coordenação imposta pelo timoneiro . As corridas eram ao Domingo de manhã. Por vezes éramos primeiro, muitas vezes perdíamos. Mas o nosso treinador Cidraque, insistia que não  se preocupava com a chegada. Era exigente com a nossa remada, com o nosso esforço, com a nossa entrega. No dia da prova era muito tolerante com o resultado, ao contrário, nos dias de treino era implacável.Várias vezes afirmava que podíamos chegar em último desde que dessemos o nosso melhor. Podíamos não ter ninguém à nossa espera na linha da meta, isso não era importante, o importante era o nosso quer, o nosso esforço, a nossa vontade intensa de remar forte e coordenadamente.Que sabedoria a do meu treinador!Só mais tarde percebi a sua filosofia de vida . Como o recordo nos dias de hoje.
Bem Haja Cidraque aonde quer que esteja. luis filipe